12.1.16
{Bacalhau da Islândia} Rumo a norte em busca do fiel amigo
Que o ingrediente mais adorado num país com costa a perder de vista seja um peixe que é pescado a milhares de quilómetros de distância diz muito da importância do bacalhau na gastronomia portuguesa. Há um mistério que se escreve na história dos bacalhoeiros e na sina aventureira dos marinheiros que se encontra inscrita em cada prato de bacalhau que chega à nossa mesa. É nas águas mais frias do Atlântico Norte que esta jornada começa, com uma pesca responsável que procura manter a sustentabilidade dos recursos marinhos, e foi lá que fui descobrir os caminhos do bacalhau da Islândia que chega a Portugal.
É cedo e não chove na manhã de Dezembro em que deixamos Reiquiavique em direcção à costa na península de Reykjanes. O sol há-de nascer muito depois para ficar apenas uma mão cheia de horas, as poucas que nesta altura do ano caracterizam o dia islandês. Os dois projectos sustentáveis que visitamos partilham um perfil de organização e know how que mostram a indústria do bacalhau como um sector importante na Islândia. Desde a pesca ao processamento e conservação do peixe, todos as etapas são meticulosamente pensadas para obter o melhor resultado: peixe de dimensão controlada (cujos stocks são monitorizados para determinar as quotas permitidas) e que é utilizado integralmente. As nossas caras de bacalhau são apenas um dos exemplos desta filosofia que tudo aproveita, da cabeça ao rabo passando pelo fígado e a pele.
Já no porto de Grindavik, é tempo de entrar num dos barcos que participam na pesca do bacalhau. A tarefa é tudo menos simples para quem como eu parece ter pouco jeito para chão escorregadio. Lá chego ao convés com ajuda e risos à mistura. Estes são barcos pequenos e funcionais com corredores estreitos e tudo no seu lugar, onde cada um sabe bem o que tem de fazer. Os milhares de anzóis arrumados ordeiramente são lançados com isco (lula ou pedaços de um peixe semelhante à cavala) que permitem uma apanha selectiva. O bacalhau é um peixe muito sensível aos sabores e odores da sua comida. Meio a brincar, lá nos é explicado que quando a lula não é boa para isco segue para consumo humano. Mas voltemos à pesca. Quando os cabos são recolhidos, o peixe é limpo e preparado para ser processado conforme o seu destino.
Afinal para onde vão as diferentes partes do bacalhau e que utilização é dada à pele?
Fico a saber que as cabeças seguem quase todas para a Nigéria e que é cada vez menos rentável produzir as caras de bacalhau salgadas que fazem os encantos de tantos portugueses. O bacalhau fresco, muito apreciado nos países do norte da Europa, representa uma importante fatia do negócio e é mantida a par do saltfish, como lhe chamam por aqui. É a tradição do peixe salgado que continua a levar muitos produtores a olhar para o bacalhau como património cultural e a investir na sua produção. E porque tudo é aproveitado, a pele é hoje muito utilizada na confecção de carteiras e acessórios.
Se aos Vikings se deve a descoberta das potencialidades gastronómicas do gadus morhua, peixe abundante nos mares do norte que podia ser seco ao ar livre, é aos povos ibéricos que se agradece a inteligente técnica de preservação utilizando o sal como agente de conservação. Hoje em dia, a cura de sal como a conhecemos é feita em Portugal com o bacalhau que chega preparado numa "marinada" salgada e é depois sujeito a uma salga que pode durar vários meses. A história desta ligação de inúmeros séculos entre a Islândia e os países do Sul da Europa está registada no museu Icelandic Saltfish em Grindavík. O testemunho deixado nas imagens a preto e branco que cobrem parte do percurso da exposição são corroboradas por representações encenadas da apanha e seca do bacalhau.
Com o dia a ser brindado com raios de sol brilhantes a romper por entre as nuvens, a hora de almoço leva-nos ali no porto de Grindavík a um café cheio de livros, mapas naúticos e um piano pronto a ser tocado. É o prato de eleição no Bryggjan que nos chama a atenção: a sopa de marisco acompanhada de pão e manteiga parece a forma perfeita de finalizar a nossa visita. Cremosa e levemente picante, cada colherada servida por conversas cruzadas numa mesa cheia onde se discute ainda e sempre a magia do bacalhau salgado. E não fosse a chegada de um certo bolo de merengue, caramelo e amendoim e talvez a temática não mudasse. A enorme fatia com todas as texturas em conjunto e a combinação de doce, salgado e amargo arrebatou-nos o coração. Lá fora a luz rasante lembra o fim do dia.
Para nós, contudo, a aventura tinha apenas começado.
Esta viagem foi feita no âmbito do projecto Bacalhau da Islândia.
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