15.9.14
Na cozinha com o 'taberneiro' André Magalhães
A maior virtude da cozinha é poder transportar-nos para outros lugares. Por vezes é o retorno aos afectos e a sabores que nos são familiares, às memórias e ao que nos faz ou fez felizes. Noutros casos é a descoberta de aromas diferentes e paisagens novas, o desconhecido que entusiasma e excita. De cada vez que tenho à frente um prato de André Magalhães fico entre uma e outra, numa espécie de antecipação de um mundo novo cheio de velhos conhecidos.
Os meses passaram e desde a minha visita ao Peixe em Lisboa que a vontade de escrever sobre este jantar persiste. O que começa como uma harmonização de pratos de André Magalhães com os vinhos da José Maria da Fonseca cedo se transforma numa animada conversa sobre o peixe na cozinha e termina com um desafio aos sentidos e às convenções. O percurso do chef passa agora pela Taberna da Rua das Flores, onde a sua apetência pessoal pelos sabores asiáticos se junta à tradicional comida de tasca num encontro feliz. Com atraso mas com a memória bem viva, aqui deixo uma crónica sobre a mesa de um 'taberneiro chinês'.
Para começar um Rissol de ostra e kimchi, entre o estranho e o quotidiano, a massa de wonton a envolver a ostra e o contraste do frito com o kimchi que podia ser mais picante. Foge a conversa para os fermentados e para a cozinha coreana à boleia de um espumante Moscatel Roxo 2012 muito singular que há-de acompanhar as duas entradas.
É o picadinho de carapau, que já faz parte da história gastronómica d'A Taberna da Rua das Flores, que se segue. Marinado com azeite e gengibre e temperado com citrinos, molho de soja e vegetais. Vem acompanhado de um gomo de toranja para harmonizar com os aromas frutados do espumante, algas e de uma hóstia de camarão, a piscar o olho às minhas memórias de infância das sempre esperadas idas ao restaurante chinês.
É altura de mudar o vinho para um Pasmados Branco 2009, um branco velho excelente, enquanto no fogão se prepara uma sopa. De seu nome Chora de bacalhau, com sabores profundos, entre o conforto do tal lugar conhecido e a promessa de aventuras mil por mares nunca antes navegados. Para mim há-de ser o prato da noite. Esta é uma sopa que faz parte da tradição dos bacalhoeiros, como nos explicou André Magalhães, feita apenas com as partes sem valor comercial, a Chora cozinhava durante horas com as línguas, as caras e outras aparas, a fornecer sustento aos homens do mar. Mas de onde vem o nome?
Com batata na sua confecção e a lembrar o chowder americano talvez seja o som parecido das duas palavras a ditar as semelhanças e a presença de bolachas como acompanhamento. Certamente diferente da "original", a guarnição da nossa Chora faz-se de algas, bacon doce estaladiço e um fio de azeite transmontano. Sem conseguir resistir a um lugar comum, é de comer e chorar por mais.
Marca-se a transição dos brancos para os tintos com um Pasmados 2011, de aromas suaves e frescos, muito adequado aos dias de Verão. O jantar prossegue com André Magalhães a explicar a sua versão de um prato de tripas com influências do mar. De seu nome Tripa Choco, é uma combinação de dobrada e choco, visualmente com uma cor e aparência idêntica, num caldo de raiz de aipo queimado com folhas de lima kaffir. Como não sou fã confessa de dobrada fixo-me no delicioso caldo, que vou sorvendo até à última gota. Talvez a harmonização menos bem sucedida da noite, culpa dos sabores fortes do prato para um vinho que me fica a apetecer encontrar noutro contexto.
O prato seguinte é responsável por uma enorme fumarada na cozinha e muitos olhares curiosos. As molejas com cantarelos e caldo cremoso de bacalhau são excepcionais! Vira-se a discussão para as miudezas e a utilização de todas as partes do animal versus as restrições colocadas pela legislação restritiva existente. É a emulsão do caldo de bacalhau que me mantém alerta e quando está terminada tem a aparência de uma maionese. O vinho escolhido parece feito de propósito para acompanhar este prato: José de Sousa 2011 é um alentejano discreto e de coração grande que acomoda as texturas do prato com generosidade.
A enóloga Catarina Santa-Martha, que ao longo do jantar nos guiou com sabedoria pelos vinhos da José Maria da Fonseca, apresenta o último da noite. O licoroso que nos é servido é um Moscatel Alambre 20 Anos, um vinho complexo e profundo, com a idade a jogar a seu favor. De barriga cheia e com o cérebro ainda a processar todas as emoções, eis que chega a sobremesa. Diz André Magalhães que se lembrou de juntar à mousse de chocolate à taberneiro que servem n'A Taberna ouriço do mar.
A ideia é que todos os pratos do jantar respondam à temática do evento e que todos apresentem produtos do mar. Chocolate e ouriço do mar? Dos descrentes, aos que torcem o nariz e os que não sabem o que esperar. Em frascos pequeninos, a mousse escura e o laranja do ouriço fazem um belo conjunto. Provo uma e outra colher e gosto muito. Os sabores potenciam-se mutuamente e há pequenas explosões na boca que são uma surpresa agradável. Mas a sobremesa divide os comensais. Dos que adoram, aos que detestam até aos que se recusam a provar, há de tudo. Perante o sorriso satisfeito de André Magalhães trocamos argumentos contra e a favor, para terminar um jantar cheio de estórias e desafios.
Adenda: A Taberna da Rua das Flores serve ao almoço um conjunto eclético de pratos simples e bem confeccionados, numa lista sucinta que se centra nas tradicionais Iscas com Elas, Meia desfeita de bacalhau ou Cozido. Outro tipo de pratos e petiscos pode ser encontrado ao jantar. O conselho é ir cedo pois o espaço é pequeno e enche rapidamente.